terça-feira, 22 de setembro de 2009

Etienne La Boétie/Discurso da Servidão Voluntária

Por hora gostaria apenas de entender como pode ser que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o poderio que eles lhe dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto têm vontade de suportá-lo, que não poderia fazer-lhes mal algum senão quando preferem tolerá-lo e contradizê-lo. Coisa extraordinária, por certo; e porém tão comum que se deve mais lastimar-se do que espantar-se ao ver um milhão de homens servir miseravelmente, com o pescoço sob o jugo, não obrigados por uma força maior, mas de algum modo (ao que parece) encantados e enfeitiçados apenas pelo nome de um, de quem não devem temer o poderio pois ele é só, nem amar as qualidades pois é desumano e feroz para com eles.
(...)
Mas, ó Deus, o que pode ser isso? Como diremos que isso se chama? Que infortúnio é esse? Que vício infeliz ver um número infinito de pessoas não obedecer mas servir, não serem governadas mas tiranizadas, não tendo nem bens, nem parentes, mulheres nem crianças, nem sua própria vida que lhe pertença; aturando os roubos, os deboches, as crueldades, não de um exército, de um campo bárbaro contra o qual seria preciso despender o seu sangue e sua vida futura, mas de um só; não de um Hércules nem de um Sansão, mas de um só homenzinho, no mais das vezes o mais covarde e feminino da nação, não acostumado à pólvora das batalhas mas com muito custo à areia dos torneios, incapaz de comandar os homens pela força mas acanhado para servir vilmente à menor mulherzinha. Chamaremos isto de covardia? Diremos que os que servem são covardes e moídos? É estranho, porém possível, que dois, três, quatro não se defendam de um; poder-se-á então dizer com razão que é falta de fibra. Mas se cem, se mil aguentam um só, não se diria que não querem, que não ousam atacá-lo, e que não se trata de covardia e sim desprezo ou desdém? Se não vemos cem, mil homens, mas cem países, mil cidades, um milhão de homens não atacarem um só, de quem o mais bem tratado de todos recebe esse mal de ser servo e escravo, como poderemos nomear isso? Será covardia? Ora, naturalmente em todos os vícios há algum limite além do qual não podem passar; dois podem temer um e talvez dez; mas mil, um milhão, mil cidades, se não se defendem de um, não é covardia, que não chega a isso, assim como a valentia não chega a que um só escale uma fortaleza, ataque um exército, conquiste um reino. Então, que monstro de vício é esse que ainda não merece o título de covardia, que não encontra um nome feio o bastante, que a natureza nega-se ter feito, e a língua se recusa nomear?
(...)
Até os bois gemem sob o peso do jugo; e na gaiola os pássaros se debatem (...). Em suma , se todas as coisas que têm sentimento, assim que os têm, sentem o mal da sujeição e procuram a liberdade; se os bichos sempre feitos para o serviço do homem só conseguem acostumar-se a servir com o protesto de um desejo contrário – que mau encontro foi esse que pôde desnaturar tanto o homem, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?

(Discurso da Servidão Voluntária, trad. Laymert dos Santos, Ed. Brasiliense, 1982, pp. 12-13 e 18-19.)

Montesquieu/Do Espírito das Leis

Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o executivo das que dependem do direito civil.
Pelo primeiro, o princípe ou magistrado faz leis por certo tempo ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos este último o poder de julgar e, o outro, simplesmente o poder executivo do Estado.
A liberdade política, num cidadão, é esta tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um possui de sua segurança; e, para que se tenha esta liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo, que um cidadão não possa temer outro cidadão.
Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis tirâncias para executá-las tiranicamente.
Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.
Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercessem esses tês poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.
MONTESQUIEU.Do Espírito das Leis, Col. Os Pensadores.São Paulo, Abril Cultural, 1973. p.156-157.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Jean-Jacques Rousseau/Do Contrato Social

Dos deputados ou representantes

Numa pólis bem constituída, todos correm para as assembléias; sob um mau Governo, ninguém quer dar um passo para ir até elas, pois ninguém se interessa pelo que nelas acontece, prevendo-se que a vontade geral não dominará, e porque, enfim, os cuidados domésticos tudo absorvem. As boas leis contribuem para que se façam outras melhores, as más levam a leis piores. Quando alguém disser dos negócios do Estado: Que me importa? - pode-se estar certo de que o Estado está perdido.
A diminuição do amor à pátria, a ação do interesse particular, a imensidão dos Estados, as conquistas, os abusos do Governo fizeram com que se imaginasse o recurso dos deputados ou representantes do povo nas assembléias da nação. É o que em certos países ousam chamar de Terceiro Estado. Desse modo, o interesse particular das duas ordens é colocado em primeiro e segundo lugares, ficando o interesse público em terceiro.
A soberania não pode ser representada pela mesma razão por que não pode ser alienada, consiste essencialmente na vontade geral e a vontade absolutamente não se representa.É ela mesma ou é outra, não há meio-termo. Os deputados do povo não são, nem podem ser seus representantes; não passam de comissários seus, nada podendo concluir definitivamente. É nula toda lei que o povo diretamente não ratificar; em absoluto, não é lei. O povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamento; uma vez estes eleitos, ele é escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua liberdade, ou uso, que dela faz, mostra que merece perdê-la.


ROUSSEAU,Jean-Jacques.Do Contrato Social, Col. Os Pensadores.São Paulo, Abril Cultural,1973, p.113-114.