segunda-feira, 31 de maio de 2010

Friedrich Nietzsche/Schopenhauer Como Educador

§ 8

(...)E, por fim, em que neste mundo importa a nossos jovens a história da filosofia? Será que eles devem, pela confusão das opiniões, ser desencorajados de terem opiniões? Será que devem ser ensinados a participar do coro de júbilo: como chegamos tão esplendidamente longe? Será que, porventura, devem aprender a odiar ou desprezar a filosofia? Quase se poderia pensar este último, quando se sabe como os estudantes têm de se martirizar por causa de suas provas de filosofia, para imprimir as ideias mais malucas e mais espinhosas do espírito humano, do lado das mais grandiosas e mais difíceis de captar, em seu pobre cérebro. A única crítica de uma filosofia que é possível e que além disso demonstra algo, ou seja, ensaiar se se pode viver segundo ela, nunca foi ensinada em universidades: mas sempre a crítica de palavras com palavras. E agora pense-se em uma cabeça juvenil, sem muita experiência da vida, em que cinquenta sistemas em palavras e cinquenta críticas desses sistemas são guardados juntos e misturados - que aridez, que selvageria, que escárnio, quando se trata de uma educação para a filosofia! Mas, de fato, todos reconhecem que não se educa para ela, mas para uma prova de filosofia: cujo resultado, sabiamente e de hábito, é quem sai dessa prova - ai, dessa provação! - confessa a si mesmo com um profundo suspiro: " Graças a Deus que não sou filósofo, mas cristão e cidadão do meu Estado!"
E se esse suspiro profundo fosse justamente o propósito do Estado, e a "educação para a filosofia", em vez de conduzir a ela, servisse somente para afastar da filosofia?

Friedrich Nietzsche. Schopenhauer Como Educador. Coleção Os Pensadores, São Paulo,Nova Cultural,1999, p.300

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Baruch Espinosa/A Origem e a Natureza das Paixões:Os Afetos são Naturais aos Seres Humanos

Aqueles que escreveram sobre as Paixões e a conduta da vida humana parecem, na sua maioria, tratar não de coisas naturais que decorrem das leis comuns da Natureza, mas de coisas que estão fora da Natureza. Na verdade, dir-se-ia que concebem o homem na Natureza como um império dentro de um império. Supõem, com efeito, que o homem perturba a ordem da Natureza mais que a segue, que tem sobre suas próprias ações um poder absoluto e tira apenas dele mesmo sua determinação. Procuram pois a causa da impotência e da inconstância humanas não na potência comum da Natureza, mas em não sei qual vício da natureza humana e, por essa razão, choram por causa dela, riem, desprezam-na, ou a mais das vezes a detestam; quem sabe mais eloquentemente ou mais sutilmente censurar a impotência da alma humana é tido por divino. Não têm faltado decerto homens eminentes (a cujo labor e indústria confessamos dever muito) para escrever sobre a reta conduta da vida muitas coisas excelentes e dar aos mortais conselhos cheios de prudência; mas, quanto a determinar a natureza e as forças das Paixões e o que pode a alma, por seu lado, para as governar, ninguém que eu saiba ainda o fez. Na verdade, o célebre Descartes, se bem que tenha admitido o poder absoluto da alma sobre suas ações, tentou, ao que sei, explicar as afecções humanas pelas suas causas primeiras e mostrar ao mesmo tempo por que vias a alma pode ter sobre as Paixões um império absoluto; mas, na minha opinião, não mostrou ele senão a penetração de seu grande espírito, como estabelecerei em lugar próprio. Por enquanto, quero referir-me àqueles que preferem detestar ou ridicularizar as Paixões e as ações dos homens, a conhecê-las. A eles decerto parecerá surpreendente que eu empreenda tratar dos vícios dos homens e da sua inépcia à maneira dos geômetras e que queira demonstrar por um raciocínio rigoroso o que não cessam de proclamar contrário à razão, vão, absurdo e digno de horror. Mais eis aqui minha razão. Nada acontece na Natureza que possa ser atribuído a um vício existente nela, ela é sempre a mesma, com efeito; sua virtude e poder de ação são os mesmos em toda parte, isto é, as leis e regras da Natureza conforme as quais tudo acontece e passa de uma forma a outra, são, em toda parte e sempre, as mesmas; por consequência, o único meio de conhecer a natureza das coisas, sejam elas quais forem, deve ser também o mesmo: isto é, sempre pelas leis e regras gerais da Natureza. As Paixões, pois, do ódio, da cólera, da inveja etc., consideradas em si mesmas, decorrem da mesma necessidade e da mesma virtude da Natureza que as outras coisas singulares; por consequência admitem certas causas, por onde são claramente conhecidas, e têm certas propriedades tão dignas de conhecimento como as propriedades de uma outra coisa qualquer cuja consideração apenas nos causa prazer. Tratarei pois da natureza das Paixões e de suas forças, do poder da Alma sobre elas, segundo o mesmo método com que nas partes precedentes tratei de Deus e da Alma, e considerarei as ações e apetites humanos, como se se tratasse de linhas, superfícies e sólidos.

Baruch Espinosa, Ética – Prefácio do Livro III, Rio de Janeiro, Ediouro, p.87

quarta-feira, 24 de março de 2010

Michel de Montaigne/De Como Filosofar é Aprender a Morrer

Não sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento.
(...)
Qualquer que seja a duração de vossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na duração e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e não viveu. Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, terdes vivido bastante. Imagináveis então nunca chegardes ao ponto para o qual vos dirigíeis? Haverá caminho que não tenha fim? E se o fato de ter companheiros vos pode consolar, pensai que o mundo inteiro segue caminho idêntico: “As raças futuras vos seguirão por sua vez” (Lucrécio).
Tudo obedece ao mesmo impulso a que obedeceis. Haverá algo que não envelheça como vós envelheceis? Milhares de homens, milhares de animais, milhares de outras criaturas morrem no mesmo instante que morreis: “não há uma só noite, nem um só dia em que não ouçam, misturados aos vagidos dos recém-nascidos, os gritos de dor em torno dos esquifes”(Lucrécio).

Michel de Montaigne, Ensaios, Livro I, Cap.XX.São Paulo, Nova Cultural, 1996, p.p.97,103-104.

terça-feira, 23 de março de 2010

Immanuel Kant/Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento”? (“Aufklärung”)



Esclarecimento [“Aufklärung”] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [“Aufklärung”].
A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem no entanto de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão difícil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de minha dieta etc., então não preciso de esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis. A imensa maioria da humanidade (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e além do mais perigosa, porque aqueles tutores de bom grado tomaram a seu cargo a supervisão dela. Depois de terem primeiramente embrutecido seu gado doméstico e preservado cuidadosamente estas tranquilas criaturas a fim de não ousarem dar um passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas.Ora, este perigo na verdade não é tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de algumas quedas. Basta um exemplo deste tipo para tornar tímido o indivíduo e atemorizá-lo em geral para não fazer outras tentativas no futuro.
É difícil portanto para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase um natureza. Chegou mesmo a criar amor a ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes do abuso, de seus dons naturais, são grilhões de uma perpétua menoridade. Quem delas se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está habituado a este movimento livre. Por isso são muito poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura.
Que porém um público se esclareça [“aufkläre”] a si mesmo é perfeitamente possível; mais que isso, se lhe for dada liberdade, é quase inevitável. Pois encontrar-se-ão sempre alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até entre os tutores estabelecidos da grande massa, que depois de terem sacudido de si mesmo o jugo da menoridade, espalharão em redor de si o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo. O interessante nesse caso é que o público, que anteriormente foi conduzido por eles a este jugo, obriga-os daí em diante a permanecer sob ele, quando é levado a se rebelar por alguns de seus tutores que, eles mesmos, são incapazes de qualquer esclarecimento [“Aufklãrung”]. Vê-se assim como é prejudicial plantar preconceitos, porque terminam por se vingar daqueles que foram seus autores e predecessores destes. Por isso, um público só muito lentamente pode chegar ao esclarecimento [“Aufklärung”]. Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, porém nunca produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos, assim como os velhos, servirão como cintas para conduzir a grande massa destituída de pensamento.
Para este esclarecimento [“Aufklärung”] porém nada mais exige senão Liberdade. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. (...) Que limitação, porém, impede o esclarecimento [“Aufklärung”]? Qual não o impede, e até mesmo o favorece? Respondo: o uso público de sua razão deve ser sempre livre e só ele pode realizar o esclarecimento [“Aufklärung”] entre os homens.
(...)
(...) Um homem sem dúvida pode, no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim só por algum tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento [“Aufklärung”]. Mas renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência, significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade. (...)
Se for feita a pergunta:”vivemos agora em uma época esclarecida [aufklärten]”?, a resposta será: “não, vivemos em uma época de esclarecimento [“Aufklärung”]. Falta ainda muito para que os homens, nas condições atuais, tomados em conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em matéria religiosa sejam capazes de fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimento sem serem dirigidos por outrem. Somente temos claros indícios de que agora lhes foi aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento [“Aufklärung”] geral ou sua saída deles, homens de sua menoridade da qual, são culpados. Considerada sob este aspecto, esta época é a época do esclarecimento [“Aufklärung”] ou o século de Frederico.

Immanuel Kant, Resposta à Pergunta: Que é “Esclarecimento”? [“Aufklärung”]. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis, Vozes, 1985, pp.100-104 e 110,112.